Eu tinha uns quatro anos de idade quando minha mãe começou atrabalhar no hospital. Lembro-me bem de como meu pai, minhas tias e avós medistraíam para que eu não chorasse por causa da ausência dela.
Claroque eu sentia a falta da mãe, ainda mais porque osplantões eram noturnos. Mas lembro que sempre foi imensamente maior o orgulhoque eu sentia por ter uma mãe que trabalhava em uma atividade tão importante, ade salvar pequeninas e tão frágeis vidas.
Sempreachei interessante como ela evitava falar dos casos da UTI pediátrica em casa,assim não nos entristecia com as trágicas histórias que atingiam famílias comas quais ela tinha contato.
Mas algunscasos foram tão marcantes para ela, imagino, que extrapolaram esse zeloconosco. Casos de crianças com histórias tão comoventes que ela precisoudesabafar e que, assim, acabaram fazendo parte da história de nossa famíliatambém. Lembro-me até do nome de alguns dos bebês, que chegavam a pareceríntimos. Alguns viveram apenas por dias, outros por horas, e nesse curto espaçode tempo, uma certeza: foram acalentados pelos cuidados de minha mãe; outrosrecuperaram-se e tornaram-se adultos fortes e saudáveis, graças às intervençõesdela.
Já presencieimuitas vezes a seguinte cena. Minha mãe está em algum estabelecimentocomercial, fila ou consultório médico, esses lugares que nos fazem puxar papocom estranhos. Ela começa trocando algumas palavras com outra mulher sobre oclima ou o cenário econômico. Eu me distraio por uns minutos e quando percebo asduas estão emocionadas, se abraçando, numa intimidade incompreensível para quemnão sabe o que minha mãe me chama para contar. E nem precisa, a esse momento jásei: acabaram descobrindo que minha mãe cuidou do recém-nascido prematuro damulher a sua frente, há mais de vinte anos.
_ “E lembrar que nem o pulmão completo tinha ainda (ou queestava entre a vida e a morte) e hoje ele está adulto e realizado”, uma dasduas sempre repete.
E uma vez elaconheceu um menino, que tinha cerca de dez anos de idade, filho de umaconhecida minha. O garoto teve uma afinidade instantânea com ela, regada atroca de ideias e muito carinho. Adivinhem? Ele foi um dos prematuros que elacuidou, logo constataram.
Ah, já conteitanto e nem mencionei a profissão de minha mãe. Ela é técnica de enfermagem. E porcausa desse detalhe, preciso contar algo mais. Certo dia, quando eu faziafaculdade de jornalismo, retornando no ônibus, escutei estudantes de enfermagemfazendo o seguinte comentário:
_“Nossa área é a única que tem técnica! Tu já viu técnico emdireito, técnico em arquitetura? Ou tu é profissional ou não? Não tem meiotermo”.
Eu fiquei com ocoração acelerado, com vontade de explicar o que eu acompanhava diariamente: aimportância fundamental que tinha uma técnica de enfermagem. Mas recuei, convictaque aquelas moças não tinham noção do que diziam e que, em breve, as mãos, oapoio e o conhecimento prático de alguma técnica iria lhes ser de grande valia.
Pelo queacompanhei desse universo ao longo de minha vida, no contato com minha mãe ecom suas colegas (auxiliares, técnicas, enfermeiras), acredito que a enfermagemseja uma das poucas profissões que possuem essa categoria, por ser justamenteuma das mais importantes. Cuidar de vidas e trabalhar para salvá-las exige umaforça-tarefa, uma equipe formada por vários anjos – auxiliares, técnicos,enfermeiros, médicos, psicólogos, entre outros que eu nem tenho conhecimentopara citar – cada um com suas valiosascompetências. Um time que trabalha unido sempre para vencer. Afinal, vencersignifica ganhar uma vida ou pelo menos zelar por ela até o último instante emque seja possível.
Minha mãe fezparte de times como esse, que salvaram centenas de vidas e foi uma jogadora decisivaem muitos casos. Foram 26 anos de atuação. Eu escrevi esse texto para ela,quando se aposentou, em 2016, e o resgato nessa semana para homenagear asprofissionais da enfermagem: as enfermeiras, cujo papel eu evidenciei em umvídeo em minhas redes sociais na semana passada, por ocasião do dia daenfermagem (12 de maio) e também as técnicas e auxiliares, que são lembradas nodia 20 de maio, completando a Semana da Enfermagem.
Um dia é poucopara a grandiosidade de todas elas, concorda?
Ah, e não possoencerrar sem dizer que esse texto também homenageia a todas as mulheres quedesempenham suas missões profissionais e sentem-se culpadas por estarem distantesdos filhos. Tenham certeza: o orgulho que eles sentem ao ver o brilho que a mãetem no olho, pelo que faz, transcende a saudade momentânea, afirmo compropriedade.